quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ser árbitro

"Quê ou o que leva uma pessoa a enveredar por carreira incompreendida, desconsiderada, ultrajada, plena de exigências, repleta de incongruências, sorvedora da paz, tranquilidade e sossego?
Como pode um qualquer cidadão, quase sempre jovem, normalmente em idade de diversão, decidir-se por se inscrever num curso de candidatos a árbitros, sujeitar-se primeiramente a cerca de oitenta horas de sessões teóricas, depois, paulatinamente, ser inserido na prática directa da actividade começando como árbitro-assistente nas camadas mais jovens, divisões inferiores, competições onde a segurança é nula, o respeito pelo ser humano se faz sentir no estágio mais baixo? São questões que sempre formulei a mim próprio e ainda hoje servem de mote a muitas conversas.
A capacidade de adaptação do homem é espantosa, a apetência que revela pelo desconhecido, pelo risco na procura de novas emoções, na persecução dos objectivos a que se propõe, se analisada convenientemente, é extraordinária. Ser árbitro é muito mais que um conjunto de predicados estereotipados invariavelmente definidos como: honestidade, justiça, dignidade.
Ser árbitro pressupõe: capacidade de análise, poder de síntese, raciocínio ligeiro, discernimento claro, adaptação fácil a situações imprevisíveis, ser disciplinado, cumpridor, possuir capacidade de alheamento sem perder noção de "onde e como". Ser árbitro exige: sacrifício, elevada capacidade de concentração, disponibilidade absoluta (obviamente de tempo mas sobretudo de entrega, de dedicação), desprendimento total, mesmo pelas coisas simples da vida, vontade de trabalhar física e tecnicamente quando outros se divertem. Sabendo-se ser o começo algo desmotivante, as instalações visitadas não serem as melhores, as condições materiais iniciais não serem de molde a cativar, só grande auto-motivação, vontade indómita, orgulho, superação constante de adversidades fazem de um candidato um árbitro, porém, tendo-se consciência que o muito inicialmente exigido pode, num futuro não distante, resultar na conquista de respeito e admiração, na abertura de novos horizontes, na frequência de ambientes diferentes, no convívio com individualidades até então dificilmente contactáveis, na experiência inolvidável que é dirigir um jogo de futebol num verdadeiro estádio, compensa todos os sacrifícios, todas as agruras, todas as incompreensões.
Aquilo que ao princípio é um mundo desconhecido; quando a dedicação se evidencia, o respeito pelos demais é notório, a exigência demonstrada no cumprimento das regras e regulamentos é imposta, se revela não fazer destrinça entre Pedro ou Paulo, se mostra consideração mas igual indiferença pelo "maillot" cor-de-rosa ou lilás, o respeito (limitado ao restrito número daqueles que se dedicaram e dedicam à causa ou fazem por a compreender) sobrevém. No fim, passada uma geração, quando se olha para trás, recordando o que se fez, tudo que se deixou por fazer, resta a satisfação de saber ser-se igual a todos quantos nos rodeiam com a sublime diferença de sabermos termos feito o que muitos não tiveram capacidade ou coragem para fazer. São esses, enfim, os apitos da glória."

Crónica de opinião de Jorge Coroado

in Jornal O Jogo de 09-09-2003